segunda-feira, 31 de março de 2008

Jules et Jim (1962), François Truffaut

Truffaut situa a história de Jules, Jim e Cathèrine no contexto da Primeira Guerra Mundial, mas poderia estar falando de todas as guerras. Depois de Jules falar que a guerra tem a infelicidade de nos privar das nossas trajetórias individuais, Jim vai de encontro ao argumento de Jules e conta a história de um homem que, após pedir o endereço de uma desconhecida, passa a enviar cartas para ela entre bombas e mortes direto das trincheiras. A história do amor de Jules e Jim pela mesma mulher, Cathèrine, desenvolve-se antes, entre e depois da guerra, mas os seus dramas individuais não ficam apagados diante da história do mundo - nem o contexto sócio-histórico fica esquecido soterrado pelas histórias individuais. Inimigos na guerra, Jules, austríaco, e Jim, francês, temem matar um ao outro entre tantos soldados. Eles são rivais na guerra, mas convivem de forma pacífica com o amor que sentem pela mesma mulher.

Com a estranha união de dois amigos que amam a mesma mulher, Truffaut não nos apresenta aqueles que aprenderam a superar a moral e viveram em paz com novos costumes: na verdade, há sempre o dilema entre a os valores vigentes e as vontades de transgredir esses valores. Cathèrine é a expressão máxima dessa contradição - e seu desejo de ir de encontro aos mandos do mundo constitui também uma atração pela morte: ela se joga no rio quando se irrita ao ver Jules e Jim discutirem sobre a virgindade da heroína de um filme, e ela também segue até a morte por não aceitar perder o objeto amado, quando Jim se decide por casar com Gilberte.

A liberdade que Cathèrine tanto busca a leva ao seu próprio fim. O fascínio dela pela liberdade é também um fascínio pela própria morte. Truffaut parece zombar do desejo de Cathèrine quando mostra Jules dizendo que queria atender à vontade dela e juntar as cinzas de Jim às cinzas dela para então jogá-las ao vento, o que não foi permitido. Nem mesmo após a morte Cathèrine conseguiu a simbiose junto a Jim que tanto almejava, nem também a liberdade.

domingo, 30 de março de 2008

Matou a família e foi ao cinema (1969), Júlio Bressane

Matou a família e foi ao cinema (1969), de Júlio Bressane, não parece ter sido feito para ser um filme "bom": ele foi pensado para seguir a estética do lixo, proposta por Bressane e seu cologa Rogério Sganzerla, que ergueram a bandeira do cinema marginal. O filme é por si só um manifesto contra a ditadura militar e pelo cinema brasileiro, só que sem panfletos.

A última sequência seria a de um filme brasileiro que teria tudo a ver com o que vemos na tela: Márcia diz à Regina que viu um filme nacional sobre duas amigas de infância que, após passar um período juntas numa casa, matam uma a outra. Regina faz cara feia ao perguntar se o filme era brasileiro. Vemos que estamos no filme falando sobre o filme.

Os recursos de câmera utilizados por Bressane são para provocar, mais do que o distanciamento, o estranhamento propriamente dito no espectador. São travellings sobre cadáveres, movimentos de extracampo que nos colocam para fora da cena, ou do que se convencionou chamar de cena.

Matou a família e foi ao cinema não tem a pretensão de nos contar uma história: os dramas de seus personagens não se desdobram, e há até quem nos surja do nada, para ir embora do nada também. Esse foi o caso do preso político que é torturado até a morte: ele nada tem a ver com os outros personagens, e nós não sabemos quem ele é e nem porque está ali. A tortura é mostrada a seco: a câmera não assume primeiros planos ou coloca uma trilha sonora para dramatizar. A representação da tortura acontece sob o ponto de vista fixo da câmera e sem canções para dizer que não falei das flores.

A trilha sonora é um capítulo em particular do filme. As músicas mais inesperadas surgem nos momentos menos oportunos. Um sambinha embala a comemoração de um alcóolatra que acabara de matar o filho recém-nascido e a esposa que reclamava da falta dinheiro, e dizia que já tinha arranjado quem a sustentasse. A música no filme tem um tom de humor negro, ela zomba dos corpos falecidos no chão, como acontece na última cena.

Matou a família e foi ao cinema destrói, de fato, o que se convencionou chamar de família com um homem, que numa referência Un chien Andalou, de Buñuel, brinca com um canivete passando próximo ao olho, como o olho da mulher em Buñuel, para depois matar seus pais e ir ver Perdidos de Amor no cinema. O filme soa ousado, não só pela sua forma, como por falar jocosamente do próprio cinema brasileiro e ainda apresentar cenas de tortura em plena ditadura militar.

domingo, 23 de março de 2008

L'amour l'après-midi, Eric Rohmer (1971)

Em mais um trabalho da série Contos Morais, Eric Rohmer, em L'amour l'après-midi, mostra-nos na primeira cena Hélène, a esposa do narrador, Frédéric, nua logo após o banho e tomando todo cuidado para não molhar o marido que estava de saída para o trabalho. A nudez de Hélène não é sensual, não nos chama atenção: é apenas a nudez da intimidade, o corpo de uma senhora casada aos olhos do marido que a vê despida todos os dias.

A atriz que interpreta Hélène, Françoia Verley, teve o mérito de se apresentar perfeitamente como uma esposa que para seu marido não constitui mais nenhuma grande segredo: ela atua bem nos gestos tímidos, nos sorrios submissos, no carinho complacente. Ao contrário do que ocorre com Hélène, os planos exploram todo o erotismo do corpo de Chloé, a ex-namorada de Bruno, o melhor amigo de Frédéric, e que aparece para desconstruir o universo burguês do casamento perfeito dele. O erotismo do corpo de Chloé tem seu ápice no momento em que Frédéric a encontra desnuda após o banho, e o primeiro plano sobre as formas dela sugerem o encanto dele pelo seu objeto de desejo, muito diferente da banalidade que era ver sua mulher nua após o banho, como na primeira cena do filme.

A câmera, guiado pelos olhos de Frédéric, tem uma certa literariedade. Ele nos fala sobre as mulheres efêmeras que circulavam pelas tardes de Paris e que tinham todas, para ele, um mistério. Faziam-no se questionar sobre o porquê de ele ter escolhido Hélène, e o que a tornaria única entre todas elas. Entretanto, Eric Rohmer sabe muito bem utilizar os recursos próprios da linguagem cinematográfica e nos mostra essas mulheres não a partir das histórias de vida delas, mas as apresenta como se as encontrasse, de fato, na rua. As tardes na cidade de Paris, o tempo e o lugar, tornam-se verdadeiros personagens do filme. A câmera ressalta as mãos, os gestos das mulheres, e ainda peregrina pelos devaneios do nosso narrador, que fantasia em abordar as passantes e levá-las para a cama.

A mulher que o vai transtornar realmente, Chloé, é impulsiva, intensa, e não quer ter nenhum compromisso. Não deseja nem que Frédéric abandone sua esposa para fugir com ela. Entretanto, Chloé também ainda tem algo que a prende às normas sociais: ela deseja ter um filho, e com os mesmos olhos azuis burgueses de Frédéric.

A montagem reforça a contradição entre os dois universos que dividiam Frédéric: da cena em que Chloé pede para ter um filho seu, o corte nos leva para a imagem do recém-nascido filho de Frédéric com Hélène, e com a ironia dos visitantes que comparam os traços físicos da criança com os do pai. A direção de arte do filme também foi muito bem pensada: do quarto desorganizado de Chloé para a casa com tudo nos seus devidos lugares de Hélène, do figurino que mostra Chloé muito bem vestida nos seus momentos de glória, ela, que fazia questão de desaparecer quando envolvida em sérios problemas para então ressurgir como uma mulher inabalável, até a camisa que Frédéric insiste em usar que havia sido comprada numa loja onde ele foi seduzido pela vendora, tudo contribui para evidenciar os conflitos dos personagens.

Chloé atenta para o fato de que Hélène não era única nem especial: era apenas uma mulher a quem Frédéric estava acostumado. Entretanto, ele, quanto mais envolvido no jogo de Chloé, com quem nunca concretiza o ato sexual, tanto mais apaixonado pela esposa. A contradição entre o corpo de Chloé enquanto objeto de desejo e o corpo de Hélène como universo deveras conhecido é evidenciado pelo fato de que, logo após ser tentado por Chloé, Frédéric busca a esposa para se satisfazer.

Quando Frédéric foge à última tentação de Chloé, a câmera não o acompanha, mas permanece estática diante da escada por onde ele corria e aos poucos sumia pelos passos cada vez mais surdos, como se a imagem fosse vista a partir de Chloé, que havia sido abondanada. O desfecho que segue poderia ser considerado conservador, se não nos restasse a dúvida posta por Chloé sobre a fidelidade da esposa, e os segredos que ela também poderia ter. Afinal, assistimos aos acontecimentos sob a perspectiva de Frédéric e Hélène permanece sempre como a boa esposa - nunca como alguém que também vive de aparências. Não obstante, o fato de a mulher de Frédéric corresponder aos seus afagos com lágrimas nos coloca em dúvida e nos provocam sob a ambiguidade dessa mulher, que antes parecia tão simples: não sabemos porque ela chora. Hélène sente-se culpada por algo que fez? Pelo quê? Carente? Desconfia que o marido a traia? Não há resposta pronta no filme e permanecemos sem acesso ao seu interior.

A escolha de Frédéric é semelhante a do homem obcecado pela mulher que trabalhava numa galeria em A padeira do bairro, outro conto moral de Eric Rohmer, em que este homem, depois de ter certo envolvimento com a padeira, prefere a mulher que ele idealizava. Em L'amour l'après-midi, assim como em La boulangère de Monceau, os narradores escolhem a mulher que era mais adequada ao padrão burguês, e reafirmam igualmente a instituição do casamento. Entretanto, o questionamento feito pelo filme, muito diferente dos seus protagonistas, não tem o caráter conservador, mas sim de crítica de costumes.