domingo, 25 de maio de 2008

Conte d'été (1996), Eric Rohmer

Na vida existem diversas paixões, algumas se sobrepõem a outras. Há também diversas formas de se apaixonar, porém há paixões que parecem mais verdadeiras do que outras. Em seu terceiro conto da série Conto das quatro estações, o Conto de Verão (1996), Eric Rohmer apresenta Gerard envolvido com três mulheres durante sua estadia em Rennes nas férias.

A fotografia mostra toda a beleza das praias, com suas cores vivas, e evidencia a passagem do tempo através do fim de tarde que chega vagarosamente, e as mudanças na luz junto à precisa montagem nos fazem sentir as mudanças no tempo de maneira delicada: então é o pôr do sol, e de repente é noite, como vemos no dia-a-dia. O transcorrer dos dias e seus efeitos são deveras importante nessa obra cinematográfica, dado que ela se apresenta em 18 capítulos, e esses são divididos de acordo com os dias. Durante o filme, estamos acompanhando os dias de Gerard.

Gerard é um mestre em Matemática que encontra por acaso num restaurante Margot, que estava trabalhando como garçonete durante o verão, mas que, segundo ela - e isso não temos como provar- é doutora em antropologia. Interssante notar que Gerard é avesso às interações em grupo, posto que sente como se estivesse vendo a todos, mas ninguém reparasse nele. Rapaz de poucos amigos, obcecado por uma Lena que nunca chega, ele, num primeiro momento, revela-se um homem apaixonado e cego por amor. Margot, que mantém com ele uma amizade, que em verdade é um interesse reprimido dado que ela tem um namorado no Pacífico Sul e não pretende traí-lo, é bastante afeita a observar as pessoas e admira os diversos grupos e indivíduos. Gerard, que buscava na música a sensibilidade que a Matemática não lhe proporcionava, parece também sentir-se atraído pela forma como Margot o enxerga - ela o escuta, ela o faz se sentir visto, observado em toda sua riqueza e complexidade.

Margot e Gerard têm longas conversas no passar da tarde, e os travellings nos fazem acompanhá-los bem de perto, como se caminhássemos junto com eles. Algumas vezes eles voltam aos mesmos lugares, ou aos mesmos assuntos, e a banalidade se mostra bela. Porque a banalidade em Rohmer tem uma beleza própria - ela aguça nossos sentidos para a beleza do cotidiano e a poesia que foge ao nosso olhar.

Gerard encontra Lena por acaso - e ela nem havia entrado em contato com ele ao chegar. Os dois têm um primeiro encontro idílico e outro de desentendimento. Enquanto Lena se confunde entre os papéis de apaixonada e indiferente, Gerard tem à sua disposição Solane, amiga de Margot apresentada por essa última. Ele se vê num dilema: quem deveria escolher entre as três? Lena, por quem nutria uma paixão, mas que não oferecia segurança aos seus intentos; Solane, algo como uma substituta, alguém que o desejava e ele tinha plena consciência disso; ou Margot, a mulher com quem ele se sentia ele mesmo, dado que Gerard representava um personagem para as outras duas.

O conflito de Gerard, em verdade, não parece ter sido resolvido. Sabemos que a grande paixão dele é a música, entretanto, o filme não nos oferece a resposta sobre se a música era a sua paixão, ou se ele não tinha resposta sobre as dúvidas a respeito daquelas três mulheres. De uma forma ou de outra, Gerard mostra-se um apaixonado pela própria paixão: entre a racionalidade matemática e a música, ele busca a música com maior apreço.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

The man who shot Liberty Valance (1962), John Ford

Desde a primeira cena, quando um enorme trem invade a pequena Shinbone com o barulho de suas rodas correndo sobre os trilhos, e sua imensidão que parece tomar conta da tela, O homem que matou o facínora poderia servir como uma alegoria do desenvolvimento da modernidade. O senador Stoddard chega à cidade do interior a oeste dos Estados Unidos armado com seus ideais de lei e ordem num lugar onde a única lei é a de quem é mais rápido no gatilho, e lembra que na primeira vez que veio à Shinbone o meio de transporte utilizado por ele foi uma simples diligência.

Entre a última vinda num trem e a primeira chegada numa diligência muitas coisas aconteceram para Stoddard, e John Ford narra os fatos em flashback depois de o personagem ver um ícone do seu passado, a antiga diligência coberta de poeira e devorada pelo tempo, e após presenciar o enterro de um antigo amigo de Stoddard.

Stoddard era um simples advogado quando chegou à Shinbone, e depois de sofrer um assalto realizado pelo facínora Liberty Valance, para depois se hospedar numa casa onde pagava a comida lavando os pratos, ele se empenha numa luta pela edificação do que seria o paradigma de estado moderno democrático.

Ao contrário de Stoddard, Tom Deniphone está plenamente inserido nos ditames do velho oeste: ele tem a sua boa e velha arma para se defender do bando liderado pelo Liberty Valance. A luta de Stoddard por estabalecer leis que protejam os cidadãos e por educá-los para saber como cobrar esses direitos vem para revolucionar a pequena cidade - e incomodar bastante o facínora.

Se Stoddard representa o Estado moderno democrático, o jornalista Peggyboad, motivo de escárnio na cidade devido ao seu alccolismo, simboliza a imprensa, que vem para suprir a necessidade das democracias modernas, alimentadas pela difusão das informações aos cidadãos. Uma passagem bem emblemática disso é aquela em que, enquano Stoddard fala aos habitantes da cidade sobre seus ideais democráticos, Peggyboad faz suas anotações para serem publicadas no jornal Shinbone Star. De um lado, o estado, do outro a imprensa que seria uma forma de mediação entre o Estado e a sociedade civil.

Peggyboad é um jornalista bem caricato, servindo muito bem como representação da imprensa. Tanto que ele esbraveja que pode construir ou destruir um homem poderoso, e que é o protetor do povo. A democracia representativa, com seu sistema que coloca de um lado os políticos profissionais, e do outro os cidadãos que restringem a participação política ao voto, encontra voz e expressão nas palavras de Stoddard, que, numa autêntica defesa da mitologia democrática afirma que a república é um sistema em que o povo toma os rumos da vida política, pois escolhe seus governantes e pode optar por recusá-los mais tarde.

Entretanto, Stoddard vai mostrar suas grandes contradições quando, diante de um fato inusitado, decide seguir a lei do Oeste fazendo justiça com as próprias mãos. Esse ato será o motivo de uma crise de valores, quando ele se vê entre essas duas concepções. Mesmo depois de construir carreira na política institucional e dedicar a vida aos valores democráticos, Stoddard sempre regride à paixão pelo velho Oeste, que se revela no filme de Ford numa resistência ao progresso da modernidade. Stoddard, em toda sua contradição entre paladino da lei e da ordem e herói armado do Oeste, como o espectador poderá ver, havia se tornado uma mescla das duas figuras e, no fim de tudo, uma grande mentira.